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https://assobrafirciencia.org/article/doi/10.47066/2177-9333.AC.2019.0007
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Editorial

PBE: PRÁTICA BASEADA EM EVIDÊNCIA, EXPERIÊNCIA OU “ENROLAÇÃO”?

Daniel Ribeiro

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Divagando em pensamentos obnubilados pela enormidade de informações desferidas nessa tal pandemia, momentos de incômodo e reflexão – causa e efeito – tomam conta de uma mente inquieta. A seguir uma breve exegese acerca do comportamento do profissional de saúde, dentro e fora da pandemia.

Imagine uma ponte: de um lado, uma gama de pesquisadores ávidos por serem os primeiros a publicar e, inclusive, sofrendo pressão da comunidade científica para tal. No outro, uma série de desejos conflitantes com a real essência da ciência: política, reserva de mercado e interesses comerciais desmedidos. Não importando a qualidade e o rigor metodológico, “ganha” quem largar na frente. A partir daí surgem os mais diversos imbróglios: Um artigo é publicado em revista de grande fator de impacto evidenciando um efeito ou fenômeno “x”; muita gente o coloca debaixo do braço – como uma bíblia - e defende peremptoriamente os resultados. Pouco depois, esse é retirado de circulação e uma nota de esclarecimento tenta retificar o deslize. Pronto, deu-se o pandemônio!

Quais são os preceitos básicos para a tomada de decisão? Muito se fala da prática baseada em evidências (PBE)1 que se trata do cuidado à saúde do paciente e que deve integrar três pilares: a melhor evidência científica disponível, a expertise do profissional, e a preferência e valores do paciente2 .

Um interessante artigo publicado em 2018 no The British Medical Journal (BMJ)3 tinha por objetivo determinar se o uso de paraquedas evitaria a morte ou lesões traumáticas graves ao saltar de uma aeronave. Os resultados apontaram que o uso de paraquedas não reduziu a morte ou lesões traumáticas graves ao saltar de aeronaves na avaliação randomizada dessa intervenção. Então após uma imprecisa avaliação do artigo, nos damos por satisfeitos com os resultados apresentados. Ou seja, a interpretação é que a partir de agora podemos suspender o uso de paraquedas em todos os saltos de aeronaves, imaginando ser uma prática baseada em evidências.

No sentido contrário, observamos profissionais crentes de que um pequeno ensaio clínico – cheio de vieses – equivocadamente aplicado em sua trajetória profissional seja o bastante para embasar a tomada de decisão, buscando retrospectivamente a melhor conduta para o manejo clínico do paciente. Essa perspectiva epistemológica assenta-se nas hipóteses julgadas de forma subjetiva, tácita e sem método eficaz de avaliação da significância dos resultados. A retórica “funciona na prática clínica” traz consigo um emaranhado complexo de paradigmas que devem ser quebrados.

Munidos da errônea certeza de que os princípios bioéticos da beneficência e não-maleficência são só e somente só aplicados à pesquisa, as decisões tomadas sem o devido rigor nos levam a cometer severas atrocidades.

Para ratificar a volubilidade do que é lido superficialmente e não avaliado criticamente, conforme deveria ser, os autores do estudo mencionado acima – uma sátira assumida que traz importantes pontos a se discutir como vieses e variáveis de confusão - citaram as suas limitações. Primeiro, o ensaio clínico só conseguiu fazer com que os participantes saltassem de pequenas aeronaves, de baixas altitudes (~60cm), estacionadas no solo, sugerindo extrapolação cautelosa para saltos em elevadas altitudes! Segundo, o estudo não foi cego. Terceiro, os indivíduos selecionados, mas não inscritos no estudo, estavam limitados a passageiros infelizes o suficiente para ficarem sentados perto dos investigadores do estudo durante voos comerciais e podem não ser representativos de todos os passageiros da aeronave. Os participantes que finalmente se inscreveram concordaram, com o conhecimento de que as aeronaves estavam estacionadas no chão. Quarto, apesar de todos as variáveis do estudo já estarem pré-especificados, não conseguiram registra-lo prospectivamente.

Mas está escrito!!! Ressalta o clássico leitor que se atenta apenas ao resumo, sem fazer uma leitura crítica.

Com o crescimento exponencial do conhecimento e o amplo acesso à informação, a prática baseada em evidências é uma competência fundamental para os profissionais de saúde4. Em uma acepção mais restrita, ir além do status quo é uma obrigação ética e moral na garantia à prestação das melhores práticas em saúde. Sem menosprezar a experiência, importantíssima para se fazer a pergunta correta, a escolha do adequado material para dar robustez à tomada de decisão clínica deve perpassar, rigorosamente, pelo nível de credibilidade científica e avaliação crítica deste.

E agora “Daniela do perfume de canela” (uma homenagem à minha honrosa professora da disciplina Metodologia do Trabalho Científico), quem poderá nos defender?

“A verdade não se importa com nossas necessidades ou desejos. Não se preocupa com nossos governos, nossas ideologias, nossas religiões. Ficará à espera, para sempre. E este, finalmente, é o presente de Chernobyl. Onde antes eu temia o custo da verdade, agora só pergunto: Qual é o custo da mentira?” Essas foram palavras de Valery Legasov – cientista russo responsável pelas investigações do acidente nuclear de Chernobyl.

Termino com uma avaliação do livro “A Peste”, de Albert Camus: “As piores epidemias não são biológicas, mas morais”.

Referências

1. Glasziou P, Burls A, Gilbert R. Evidence based medicine and the medical curriculum. BMJ. 2008 Sep 24;337:a1253. doi: 10.1136/bmj.a1253.

2. Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes RB, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996 Jan 13;312(7023):71-2. doi: 10.1136/bmj.312.7023.71.

3. Yeh RW, Valsdottir LR, Yeh MW, Shen C, Kramer DB, Strom JB, et al. Parachute use to prevent death and major trauma when jumping from aircraft: Randomized controlled trial. BMJ. 2018 Dec 13;363:k5094. doi: 10.1136/bmj.k5094.

4. Mary-Anne Ramis, Anne Chang, Aaron Conway, David Lim, Judy Munday, Lisa Nissen. Theorybased strategies for teaching evidence-based practice to undergraduate health students: a systematic review. BMC Med Educ. 2019 Jul 18;19(1):267. doi: 10.1186/s12909-019-1698-4.

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